1.3.
O que é Gonzo Journalism? No começo da segunda metade da década de 60, em pleno auge das novas liberdades editoriais de que gozava o New Journalism na imprensa norte-americana, surge uma interpretação extremada dos seus princípios sob a forma de um jornalista free-lancer do Kentucky, chamado Hunter S. Thompson. Criador e principal representante de uma modalidade de jornalismo literário denominada Gonzo Journalism, Thompson propôs a transposição da barreira essencial que separa o jornalismo da ficção: o compromisso com a verdade. Também chamado de jornalismo fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário, o gênero inventado por Thompson tem sua força baseada na desobediência de padrões e no desrespeito de normas estabelecidas, além da insistência em quatro grandes temas: sexo, drogas, esporte e política.
Uma vez que as origens e postulados do gênero estão intimamente ligados à vida do próprio Thompson, faz-se necessário um breve histórico do autor.
Hunter Stockton Thompson nasceu durante a Depressão norte-americana, em 18 de julho de 1939 (as biografias divergem quanto ao ano, registrado algumas vezes 1937), em Louisville, no Kentucky, estado sulista que, segundo a pesquisadora canadense Christine Othitis conta com um "rico folclore no que diz respeito a varrer da face da terra tribos indígenas e monstros, além das conexões com grupos de ódio" (1994). Criança hiperativa, Thompson tinha a tendência de empregar sua energia para fins violentos e destrutivos, como o provalecimento na escola e a destruição de propriedade. Além de ser conhecido na vizinhança pelo hábito de atirar pedras e disparar armas de pressão, uma de suas brincadeiras preferidas durante a infância era "Norte-sul" (Othitis , 1994), na qual ele e seus amigos reproduziam batalhas da Guerra Civil norte-americana. As relações com a escrita e os desvios de conduta acompanham Hunter desde muito cedo. Aos oito anos de idade, Thompson é convidado pelo amigo Walter Kaegi Jr., então com 10 anos, a escrever sobre estas batalhas para um jornal de bairro chamado Southern Star. Na mesma época é registrado o seu primeiro atrito com a lei:
Ele e um grupo de garotos vandalizaram um banheiro masculino do Parque Cherokee, atirando latas, espalhando lixo e pichando as paredes. O grupo foi pego pela polícia e levado à delegacia, onde uma ocorrência chegou a ser preenchida. (Giannetti, 2002, p.22)
A constante presença de álcool e drogas na sua narrativa não é acidental. Seus pais, Virgina Ray e Jack, eram alcoólatras e freqüentemente tinham surtos violentos. Extremamente rígido, Jack costumava disciplinar os filhos com castigo físico, mas isso não incutiu em Thompson um sentimento de ódio contra o pai. A morte de Jack aos 57 anos, vítima de uma embolia cerebral, foi um impacto muito duro para Thompson, então enciumado pela atenção que o pai lhe negligenciava em favor do irmão caçula, Jim, com apenas um ano de idade. Virginia afundou-se ainda mais no vício e ele também começou a beber. Na época, Thompson tinha 15 anos.
Até então, Thompson era um atleta muito versátil, tendo organizado ele mesmo a maioria das equipes das quais fazia parte, do baseball até o basquete. O ambiente em que foi criado era propício: Louisville é famosa por ser o lar da primeira fábrica de bastões de baseball - os lendários Louisville Sluggers -, além de sediar anualmente o Kentucky Derby, um dos mais importantes eventos do turfe norte-americano. Seu pai também exerceu influência neste aspecto, sendo ardoroso fã do Kentucky Colonels, a equipe de baseball da cidade. Depois da morte do pai, contudo, ele acabou conseguindo um emprego no balcão de doces de uma lojinha na qual "não hesitava em comer os doces que deveria vender e logo que começou a ganhar peso, teve que deixar o time Castlewood" (Giannetti, 2002, p.22).
Ainda que tenha se afastado da prática de esportes, Thompson manteve o interesse escrevendo sobre o assunto para o Southern Star, que agora já havia aumentado em número de leitores e páginas. Isto, contudo, não o afastou dos problemas com a justiça: por volta dos 17 anos, Thompson costumava convencer colegas da escola a matarem aula para beber com ele, o que mais tarde acabou dando origem a um grupo que batizaram de The Wreckers, cuja principal atividade era praticar atos de vandalismo pela cidade. Por conta desse tipo de atividade, pouco antes de completar 18 anos, Thompson é condenado a sessenta dias de prisão por um assalto.Por sugestão do juiz que o condenara, ele aceita alistar-se na Força Aérea como parte da sentença.
Mandado à base de Eglin, durante algum tempo Thompson escreveu para o jornal Command Courrier. Ainda que a maioria dos soldados gostasse das suas matérias, ele não era muito popular entre os comandantes, que o consideravam um problema moral. Além disso, Thompson desobedecia a oficiais e às normas da base e escrevia com freqüência para outros lugares - o que não lhe era permitido. Apesar disso, conseguiu ser dispensado de Eglin com honras. Depois de enfrentar os mais variados problemas em pequenos diários nas cidades por onde passou, Thompson aceitou o convite de cobrir a América Latina para o National Observer e, mais tarde, de residir em Porto Rico escrevendo sobre boliche para a revista El Sportivo. O editor, na época, convenceu Thompson de que a revista seria a "Sports Illustrated do Caribe" (Othitis, 1994) mas não foi bem isso que aconteceu:
Eles estavam introduzindo o boliche em Porto Rico. Eu tinha de sair todas as noites para cobrir boliche em San Juan. O boliche estava ficando grande. Pistas estavam pipocando por todos os lados. O que se pode dizer sobre boliche? Os jogadores só querem ver seus nomes impressos. Esse era o essencial... cerca de metade do meu trabalho era garantir que todo jogador de boliche em San Juan tivesse seu nome na revista... e desde então eu odeio a palavra boliche. (Thompson, 1990, p.65).
A monotonia do trabalho acabou fazendo com que Thompson voltasse aos Estados Unidos em 1962, pouco tempo depois do assassinato do presidente Kennedy, e comprasse uma propriedade em Woody Creek, Colorado, que mais tarde tornou-se conhecida como Owl Farm, onde ele reside até hoje. Em busca de trabalho, Thompson percorreu todos os estados do meio-oeste e oeste escrevendo sobre "festivais de música e questões de interesse público" (Othitis, 1994) para o National Observer. A sua insistência em acrescentar conteúdo político às matérias contribuiu para que ele fosse designado para resenhar livros, mas antes disso os atritos com o National Observer começaram a se agravar com a recusa do jornal em publicar um tributo ao presidente Kennedy. Por fim, Thompson demitiu-se do National Observer quando recusou-se a escrever um artigo sobre o livro de Tom Wolfe The Kandy-Colored Tangerine Flake Streamline Baby.
Assim como muitos de seus contemporâneos, Thompson enfrentava o dilema do especialista em reportagem: queria escrever ficção mas via-se obrigado a buscar refúgio na sobriedade do jornalismo enquanto não alcançasse algum êxito literário. O surgimento do New Journalism veio renovar as esperanças de todos os aspirantes à romancistas - com Thompson não foi diferente. Utilizando técnicas de imersão semelhantes às de Dickens descritas anteriormente neste trabalho, ele decidiu viver durante dezoito meses entre os membros da gangue de motociclistas Hell's Angels para escrever um artigo publicado em 1965, na revista Nation.
A reputação dos Hell's Angels havia se alastrado pelo país desde que um relatório feito pelo então Secretário de Segurança da Califórnia, Thomas C. Lynch, havia os considerado uma ameaça. O famoso Lynch Report trazia denúncias de estupro, vandalismo e brigas causadas pelos motoqueiros, muitas delas baseadas em evidências bastante questionáveis. "Trazia, por exemplo, uma denúncia de estupro que havia sido feita pela vítima às risadas, sem que o exame de corpo delito tivesse encontrado sinais de penetração forçada" (Giannetti, 2002, p.28). O relatório ajudou a alimentar uma safra de matérias sensacionalistas sobre os Hell’s Angels, que muitas vezes não correspondiam ao que de fato havia acontecido. A idéia de Thompson era mostrar às pessoas até que ponto o Lynch Report se baseava na realidade, comparando trechos do relatório com as suas experiências na convivência com o grupo.
Durante esse ano e meio com os motoqueiros, Thompson participou de todas as atividades ilegais às quais eles estavam ligados. Eventualmente ele acabou se deparando com a questão do consumo de drogas entre os membros da gangue, e falou sobre o assunto de forma aberta e sem meias-palavras:
Os Angels insistem em dizer que não há viciados em drogas em seu clube, e, para todos os efeitos legais e médicos, isso é verdade. Viciados são centrados; sua necessidade física por qualquer que seja a droga em que estejam viciados os força a serem seletivos. Mas os Angels não têm foco algum. Eles devoram drogas como vítimas da fome soltas em um raro banquete. Eles usam qualquer coisa que esteja disponível e se o resultado disso forem gritos e delírio, então que seja. (Thompson apud Giannetti, 2002, p.29)
A idéia de Thompson nunca foi a de redimir os Hell's Angels perante a sociedade, por isso fazia questão de demonstrar que eles, de fato, viviam à sua margem. Thompson tinha uma preocupação em mostrar os dois lados desta mesma questão e deixar para o leitor a formação dos seus próprios conceitos, fugindo assim do sensacionalismo que imperava nas matérias sobre os motoqueiros.
É interessante ressaltar que foi justamente neste período junto com os Hell’s Angels que Thompson tornou-se consumidor habitual de entorpecentes, mais uma característica que o acompanharia em toda a sua obra a partir de então. O primeiro contato com o LSD é descrito pela jornalista Cecília Giannetti na sua monografia de conclusão do curso de graduação em jornalismo, Técnicas Literárias em Jornalismo Cultural:
Foi no período passado junto aos Hell´s Angels que Thompson experimentou o LSD pela primeira vez. O jornalista Ken Kesey, que o visitou em um agrupamento de Angels, ofereceu a droga e todos usaram. Foi depois dessa primeira experiência que Thompson passou a usar drogas com freqüência. (2002, p.29)
A repercussão da matéria fez com que diversas editoras fizessem propostas para editar um livro, que acabou sendo publicado pela Random House em 1967 sob o título Hell's Angels: The Strange and Terrible Saga of the California Motorcycle Gang e reeditado mais de 35 vezes.
É importante observar que, ainda que as técnicas usadas para captar as informações e escrevê-las já fossem mais ousadas do que as praticadas pelo New Journalism, este artigo ainda não é considerado um exemplo do Gonzo Journalism. Wolfe escreve sobre essa variação dentro do New Jornalism no qual o repórter participa da ação de forma mais direta, sem, no entanto, referir-se a ele como um gênero à parte:
Em 1966 surgiu uma nova leva de jornalistas dispostos a se infiltrar em qualquer ambiente, incluindo-se sociedades fechadas, e sair com vida da empreitada. (...) Mas o prêmio Bolas de Ferro para escritores independentes correspondeu aquele ano a um obscuro jornalista da California chamado Hunter Thompson, que misturou-se aos Hell's Angels durante 18 meses - como repórter, não como membro para escrever Hell's Angels: The Strange and Terrible Saga of the California Motorcycle Gang (...) (1973, p.44)
O principal motivo pelo qual Hell’s Angels, ainda que escrito por Thompson, não seja categorizado como Gonzo Journalism é a ausência de algumas características fundamentais que serão descritas nos próximos capítulos deste trabalho. Outros autores, como Christine Othitis, reconhecem que: "Hell's Angels provavelmente é o único livro de Thompson que poderia ser chamado de new journalism (...) é o primeiro - e único - livro no qual Hunter mantém um estilo controlado de se expressar, no sentido de "escritura não-gonzo" (Othitis , 1994a).
Seu primeiro artigo a ser batizado de gonzo só foi publicado em 1970, na edição de junho da Scanlan's Monthly, uma revista de esportes que teve vida curta. The Kentucky Derby is Decadent and Depraved deveria ser um artigo sobre o mais famoso evento esportivo de Louisville mas acabou transformando-se numa ácida crítica ao modo de vida da população local, outra característica que se viu, a partir daí, em praticamente toda sua obra. George Plimpton descreve a tendência que Thompson tem de mudar de um assunto pro outro como uma tentativa de escrever sobre aquilo que ele acredita que os seus leitores querem ler. Na biografia Hunter, E.Jean Carroll entrevista Plimpton, que afirma que Thompson é uma "persona literária, e isso é muito raro" (1993, p.147). The Kentucky Derby is Decadent and Depraved não é realmente sobre a corrida de cavalos. De fato, a corrida em si aparece em cerca de 1% do artigo (aliás, o vencedor da corrida nunca é mencionado). A história é devotada ao encontro de Thompson com um bobalhão em um bar, caipiras de Kentucky, o encontro com o cartunista Ralph Steadman e a janta que os dois compartilham com o irmão de Thompson e a sua mulher.
Bill Cardoso, jornalista e amigo de Thompson foi quem cunhou o termo em uma carta sobre o artigo: "Eu não sei que porra você está fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo" (Carroll apud Othitis, 1994a). Segundo Cardoso, a palavra orignou-se da gíria franco-canadense gonzeaux, que significaria algo como "caminho iluminado". Thompson adota o termo e pouco tempo depois aceita o convite de cobrir a Mint 400, uma corrida de motos no deserto de Nevada, para a Sports Illustrated. Na companhia de um amigo advogado, ele parte em direção a Las Vegas mas logo deixa de lado a corrida para concentrar-se em uma profunda análise sociológica dos viciados em jogo e drogas e todo o tipo de degenerado que se reúne em volta dos cassinos. O artigo é recusado pela Sports Illustrated, mas ganha destaque em duas edições da Rolling Stone, em novembro de 1971, publicado sob o pseudônimo Raoul Duke. Logo o artigo é editado como livro, sob o título de Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream.
Ainda que seja um dos seus livros preferidos - e um clássico de culto -, Thompson sempre disse que esta foi uma experiência fracassada em gonzo jornalismo. "Minha meta era comprar um caderno grossão, escrever tudo à medida que ia acontecendo e aí mandá-lo, sem editar" (Othitis, 1994a). De todo modo, é com esse livro que Thompson conquista definitivamente o reconhecimento popular e o status de estrela tornando-se um dos mais fortes ícones de contracultura norte-americana no século XX, com direito a ter dois filmes de Hollywood baseados em seus textos. O primeiro, Where The Buffalo Roam (1980) traz o comediante Bill Murray no auge de popularidade no programa de televisão Saturday Night Live no papel de Hunter. Em 1998 é a vez de Johnny Depp estrelar a versão para o cinema de Fear and Loathing in Las Vegas. Othitis diz que o "Gonzo Journalism era um novo tipo de fenômeno do qual todos queriam fazer parte" (Othitis, 1994b).
Nos anos seguintes Thompson segue desenvolvendo o Gonzo Journalism em artigos para revistas como a Playboy e Rolling Stone, San Francisco Chronicle e, mais raramente para a Esquire e Vanity Fair e na publicação dos livros Fear and Loathing on the Campaing Trail '72, que originou-se de uma série de artigos para a Rolling Stone sobre a campanha presidencial de 72 de Nixon versus McGovern; The Curse of Lono, que deveria falar sobre a Maratona de Honolulu mas se perde em divagações sobre o folclore local; The Great Shark Hunt, que traz alguns de seus melhores artigos publicados em revistas; e Generation of Swine, coletânea de suas colunas da época de crítico de mídia no San Francisco Examiner.
Outros livros lançados por Thompson incluem Songs of the Doomed, de 1990, onde ele critica a geração pós-anos 60 que, segundo ele, teria traído o sonhos de uma "Nação Woodstock"; Better Than Sex, de 93, onde mais uma vez aparece o seu comentário político sobre a campanha presidencial de Bill Clinton em 1992; The Proud Highway: Saga of a Desperate Southern Gentleman, 1955-1967, publicado em 1997 é uma coletânea de cartas, assim como a segunda parte da antologia, Fear an Loathing in America: The Brutal Odyssey of an Outlaw Journalist, 1968-1976, publicado em 2000. Seu último livro a ser publicado foi o romance perdido The Rum Diary, em 1999, escrito no Brasil e em Porto Rico durante a época do El Sportivo. O livro conta a história de um jornalista anônimo (presume-se que seja ele mesmo), que, junto dos amigos acaba envolvendo-se profundamente na vida noturna portoriquenha.
Atualmente Thompson vive sozinho na Owl Farm, em Woody Creek, Colorado, onde passa seus dias caçando ursos e disparando contra quem tenta se aproximar de sua propriedade. Há um bom tempo comunica-se com o mundo apenas através do seu aparelho de fax. Mais recentemente vem escrevendo uma coluna semanal sobre esportes no website da emissora de televisão a cabo ESPN, sob o título Hey, Rube!
Gonzo Journalism é um formato extremamente peculiar de se fazer uma reportagem, desde a captação dos dados até a sua redação. Assim como o New Journalism, o Gonzo Journalism é um movimento que carece de manifestos ou regras. Desta forma, existem várias definições para o estilo de reportagem criado e desenvolvido por Hunter S. Thompson a partir do seu artigo sobre o Kentucky Derby para a Scanlan's Monthly. O próprio Thompson tem mais de uma definição para Gonzo Journalism, sendo a mais famosa:
Um estilo de reportagem baseada na idéia do escritor William Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo - e os melhores jornalistas sempre souberam disso. (apud Burns, 2001)
Com isto, Thompson não quer dizer que a ficção seja um gênero melhor do que o jornalismo - e nem o contrário. Thompson acredita que tanto a ficção quanto o jornalismo são categorias artificiais (Giannetti, 2002) e que as duas, quando feitas da melhor forma possível, são caminhos diferentes para um mesmo fim: informar alguém sobre alguma coisa. Uma peça literária, seja de ficção ou não-ficção, cujo principal objetivo seja o de informar, necessita de um escritor que imprima verossimilhança às informações. Ou seja, precisa ser "semelhante a verdade; que pode ou parece ser verdadeiro" (Minidicionário da Língua Portuguesa, 1992).
Este conceito está intimamente ligado à coleta de informações e fatos. Thompson costumava dizer que o bom Gonzo Jornalista deveria ter o talento de um grande jornalista, o olho de um fotógrafo, e os culhões de um ator, ou seja, viver a ação e reportá-la enquanto - e como - estivesse se desenrolando. Esta técnica é comparável ao que atores chamam de method acting. Atores que escolhem esta técnica procuram transformar-se no seu personagem para capturar a sua essência, como DeNiro fez em Touro Indomável, Val Kilmer em The Doors, Marlon Brando em Apocalypse Now e até mesmo Bill Murray em Where the Buffalo Roam e Johnny Deep em Fear and Loathing in Las Vegas. A diferença aqui é que Thompson era sempre o seu próprio personagem.
Um repórter que passe seis meses morando em uma favela para escrever uma reportagem sobre o tráfico de drogas e a sua relação com a comunidade estará exposto ao mesmo nível de informações que um escritor em situação semelhante estaria. Tanto um romance quanto um artigo jornalístico escrito a partir do mesmo material coletado podem oferecer retratos bastante acurados desta realidade - ainda que o primeiro possa utilizar-se de recursos como a inserção de personagens e situações que não necessariamente existiram. É possível ser verossímil sem ter um compromisso estrito com a verdade, desde que o autor esteja devidamente inserido naquilo sobre o que está escrevendo.
No artigo de abertura escrito por Mark Kramer para Literary Journalism - A New Collection Of The Best American Non-Fiction, ele enumera oito regras que devem ser seguidas pelo jornalista literário. A primeira delas é justamente "imergir-se no universo do assunto da reportagem" (apud Giannetti, 2002, p.8). Kramer observa que os jornalistas de tradição literária costumam acompanhar suas fontes durante muito tempo, de modo a "garantir a compreensão do tema de maneira que mostre níveis diferentes das pessoas em suas rotinas" (Giannetti, 2002, p.8). Todo o processo de levantamento de dados, desde um estudo prévio sobre o tema, o trabalho de campo e uma reflexão sobre todo o material coletado permite que, no final do trabalho, o autor conte com um nível de informações tal que se veja capaz de construir situações ou personagens absolutamente ficcionais, mas verossimilhantes o suficiente para serem acreditados como verdadeiros.
Thompson admite que muitas das histórias descritas em seus artigos nunca aconteceram. Seu estilo de escrever, de caráter extremamente confessional (principalmente pelo uso obrigatório do narrador na primeira pessoa) e fazendo uso de uma linguagem clara e direta, faz com que o leitor acredite que os fatos que estão sendo expostos correspondam exatamente ao que aconteceu, ainda que muitas das situações que fazem parte de sua obra pareçam inacreditáveis. Por outro lado, o estilo de vida exagerado e fanfarrão de Thompson lhe confere uma aura de legitimidade quando ele fala sobre personagens bizarras ou situações extremas. A isso, juntam-se as testemunhas de eventos surreais, como o descrito por E. Jean Carroll, no seu Hunter, uma das mais completas biografias sobre o autor. O fato aconteceu em San Juan, em Porto Rico, quando ele trabalhava para o Sportivo. Thompson e Robert Bone, um fotógrafo do The Middletown Daily Record estavam no lixão da cidade, atirando em ratos, quando a polícia os deteve. Bone descreve o ocorrido da seguinte forma:
Nós fomos detidos e levados à cadeia mas Hunter, claro, com o seu considerável charme, começou a fazer amizade com os policiais. Naturalmente nos livramos da arma, então havia alguma dúvida... acabamos tomando café com os policiais. Foi então que Hunter colocou seus pés em cima da mesa, enclinou-se para trás e balas da Magnum .357 rolaram para fora do seu bolso. Nos jogaram de volta na cadeia e ligaram para a embaixada. (Carroll, 1993, p92).
Por ser uma persona literária, Thompson não conseguia dissociar sua vida e sua obra, o que ajudava a alimentar a controvérsia sobre a veracidade dos episódios que relatava. Algumas mentiras, entretanto, acabaram desmascaradas. No artigo The Kentucky Derby is Decadent and Depraved, ele fala sobre como pegou o cartunista galês Ralph Steadman para conhecer seu irmão, Davidson, e a sua mulher. O incidente aconteceu, mas não em Kentucky e certamente não com Davidson. Aconteceu em Woody Creek, e Ralph estava bêbado. Foi de um amigo da família, Bonnie Noonan, de quem Ralph desenhou a caricatura feia.
Outra histórica grotescamente exagerada foi The Death of Russell Chatham, que apareceu originalmente no San Francisco Chronicle. Sem idenficar-se como o autor, Thompson escreveu um obituário convincente sobre o artista de Montana, dizendo que ele havia sido assassinado por engano enquanto pescava. Thompson inventou uma história bizarra na qual Chatham teria sido fisgado por alguns pescadores em um barco que o espancaram até a morte pensando que fosse um peixe. Enquanto a maior parte das pessoas entendeu a piada, aparentemente, alguns colecionadores de arte foram completamente enganados.
As versões do próprio Thompson sobre as coisas que aconteceram também variam ao longo dos anos. Por exemplo, às vezes ele diz que o caroneiro que aparece logo nas primeiras páginas de Fear and Loathing in Las Vegas era real; outras vezes diz que foi inventado. De qualquer forma, isto não interessa para quem lê a história. O tímido caroneiro estava ali para funcionar como testemunha do nível de loucura compartilhado pelos dois tripulantes do conversível vermelho. Ele poderia tanto ser uma alucinação provocada pelo abuso de drogas quanto uma pessoa real ou ainda um mero elemento narrativo acrescentado para extrair uma maior quantidade de informações sobre os personagens, como no trecho:
Por quanto tempo manteremos esta situação? - ponderei. Quanto tempo até que um de nós comece a falar de forma descontrolada e sem sentido com este garoto? O que ele vai pensar, então? Este mesmo solitário deserto foi o último lar conhecido da família Manson. Ele fará esta desagradável conexão quando meu advogado começar a gritar coisas sobre morcegos e gigantescas arraias descendo até o carro? Se sim - bem, teremos que cortar sua cabeça e enterrá-lo em algum lugar. É desnecessário dizer que não podemos deixá-lo ir. Ele nos denunciaria rapidinho para algum tipo de autoridade nazista, que nos perseguiria como cães. (Thompson, 1971, p.5)
A presença do caroneiro cria um desconforto no carro, onde Thompson e seu advogado percorrem a rodovia que cruza o deserto rumo a Las Vegas consumindo uma quantidade extraordinária de drogas. Neste trecho percebemos também o quanto Thompson está drogado, uma vez que cogita a possibilidade de assassinar o rapaz baseado nos seus próprios delírios paranóicos e, ao mesmo tempo, o quanto tem consciência deste estado - e o quanto teme a imprevisibilidade das suas reações sob o efeito das drogas. Podemos concluir ainda que ele conhece as suas reações sob o efeito das drogas porque já esteve muitas vezes nesta situação - mais uma das principais características do Gonzo Journalism.
Até aqui, podemos identificar pelo menos quatro características essenciais ao gênero:
a) Captação participativa
O Gonzo jornalista não se contenta em observar ou recolher depoimentos de pessoas que vivenciaram determinadas experiências. Para oferecer uma maior dimensão de informações, ele próprio precisa viver a experiência. Tornando-se parte do objeto de sua reportagem, o Gonzo jornalista acaba interferindo - ainda que involuntariamente - no destino da história.
b) Dificuldade de discernir ficção da realidade
Para o Gonzo jornalista é permitido o uso de personagens e situações que nunca existiram, se isso contribuir para aumentar o nível de informações dispensado ao leitor e conferir maior dramaticidade à cena que está sendo descrita. É importante também que a diferença entre ficção e realidade não seja jamais explicitada.
c) Consumo de drogas
Ainda que não seja necessariamente uma exigência para que um artigo seja considerado Gonzo, o abuso de drogas e também de bebidas alcoólicas é recorrente na obra de Thompson. Em Fear and Loathing in Las Vegas, por exemplo, um capítulo inteiro do livro é dedicado ao uso do adrenochrome, uma droga raríssima e incrivelmente potente. No livro, o abuso de drogas é a característica mais predominante, o que contribui para que se acredite, erroneamente, que o Gonzo Journalism é apenas um formato de reportagem feito sob o efeito de drogas. A diferença entre as duas coisas será abordada nos próximos capítulos deste trabalho.
d) Uso do narrador na primeira pessoa
Uma vez que a captação de dados é feita de forma participativa, o uso da primeira pessoa imprime legitimidade às histórias contadas pelo Gonzo jornalista e o transforma em uma espécie de jornalismo confessional.
Em seu artigo The Beginnings and Concept of Gonzo Journalism (1994a), Christine Othitis enumera sete características que, segundo ela, estão sempre presentes na obra de Hunter Thompson. Para a autora, Thompson é o "único gonzo jornalista do mundo" (Othitis, 1994) e, sendo assim, não há nada com o que comparar o seu trabalho a não ser com ele mesmo. As sete características apontadas por Othitis são:
a) Abordagem de assuntos relacionados ao sexo, violência, drogas, esportes e política
Nem todo texto Gonzo precisa estar relacionado com algum destes quatro temas, mas a obra de Thompson, de um ou outro jeito, está. Thompson tem a tendência de escrever sobre assuntos nos quais ele está pessoalmente envolvido e faz questão de conhecê-los muito bem. Os temas predominantes em sua obra não são estes por acaso: aparecem em sua obra justamente por representarem as principais obsessões da maioria do povo norte-americano. "Deste modo, Thompson não está escrevendo só a seu respeito - literalmente - mas para uma grande fatia da população." (Othitis, 1994a)
b) Uso de citações de gente famosa e outros escritores - ou às vezes, dele mesmo - como epígrafe
Este recurso estilístico é largamente utilizado por Thompson e serve para situar o leitor no clima da narrativa e oferecer uma pequena prévia do que ele vai encontrar nas páginas a seguir. Para abrir Fear and Loathing In Las Vegas, por exemplo, Thompson usa uma frase do Dr. Johnson: "Aquele que faz uma besta de si, livra-se da dor de ser um homem" (Thompson, 1971). O livro, essencialmente, fala sobre duas pessoas que chegam a um extremo tanto no consumo de drogas como no relacionamento com as outras pessoas. Thompson e seu advogado consomem doses maciças de todo o tipo de substância entorpecente e depois invadem, roubam, vandalizam e mentem. Em suma, brutalizam-se.
Em Generation of Swine, Thompson abre o livro com "E eu lhes darei a estrela da manhã" (Thompson, 1980), uma frase de Revelações, da Bíblia. É uma citação muito apropriada, já que depois de falar interminavelmente sobre hotéis e idiotas, ele começa a discorrer sobre a sua idéia do inferno.
O oitavo capítulo de Fear and Loathing in Las Vegas é uma longa sucessão de argumentos que discorrem sobre o fim do movimento hippie nos anos 60 e os órfãos dessa geração que se vêem obrigados a preencher este vazio através do abuso de drogas, como ele e seu advogado. A epígrafe usada neste capítulo é uma frase de Art Linkletter "Gênios em todo o mundo, de pé, de mãos dadas, e um choque de consciência faz todo o círculo girar" (Thompson, 1971, p.63).
c) Referências a figuras públicas como jornalistas, atores, músicos e políticos
Esta característica da obra de Thompson relaciona-se com a popularização do Gonzo Journalism como elemento da cultura pop norte-americana. Por falar abertamente sobre drogas e tecer comentários políticos sem meias-palavras na Rolling Stone (onde foi originalmente publicado o material sobre o embate eleitoral Nixon vs McGovern que depois foi editado como Fear and Loathing: On the campaign trial '72), Thompson tornou-se muito popular entre os jovens e demais inseridos na contracultura durante os anos 70. Logo depois da publicação de Hell's Angels, os artigos de Thompson na Rolling Stone e na Playboy provocavam filas nas bancas. Nos grandes centros urbanos, o rosto de Thompson e o logotipo do Gonzo Journalism - um punho em forma de adaga cuja mão segura um botão de peiote, conhecido alucinógeno indígena extraído de algumas espécies de cacto - passaram a adornar camisetas e posters.
Por conta disso, ele acabou virando inspiração para um personagem do cartunista Gary Trudeau chamado Uncle Duke, na popular tira de jornais Doonesbury. As referências a figuras públicas mostram o quanto ele está ligado no que está acontecendo - e quais são as suas posições em relação a isso.
d) Tendência de se distanciar do assunto principal - ou do assunto por onde o texto começou
George Plimpton descreve a tendência que Thompson tem de mudar de um assunto pro outro como uma tentativa de escrever sobre aquilo que ele acredita que os seus leitores querem ler. (Othitis, 1994a) Na maior parte do tempo, Thompson está escrevendo sobre o comportamento das pessoas.
Em grande parte de sua obra, a narrativa começa com a tarefa de cobrir determinado assunto para a imprensa tradicional mas Thompson acaba atraído pela possibilidade de discorrer sobre o componente humano presente na história. Neste ponto, é interessante ressaltar o que Wolfe escreveu sobre Gonzo Journalism:
Uma forma de jornalismo em que o repórter é chamado para fazer um artigo sob encomenda (...) mas acaba escrevendo uma curiosa forma de autobiografia. Não se trata de autobiografia no sentido usual, porque o escritor se coloca na ação sem outro motivo que o de escrever algo. O tema acaba por ser puramente casual e o escritor tem de usar o talento para enganar o leitor, fazendo com que aquilo pareça fascinante. Hunter Thompson é o mestre desta forma, que se denomina gonzo jornalismo. (1976, p.95)
Em The Kentucky Derby is Decadent and Depraved, quando deveria fazer um artigo sobre a corrida de cavalos, Thompson escreve sobre os capiras do Kentucky; em Fear and Loathing in Las Vegas, ele deixa a cobertura da Mint 400 de lado para falar sobre os viciados em drogas, policiais, empregados de hotel, turistas, ciclistas, malucos e repórteres em Las Vegas; Em The Curse of Lono, Thompson buscava entender o que leva tanta gente a correr na Maratona de Honolulu mas acaba falando sobre o folclore local e dos seus esforços em pescar um Marlin Gigante. Mesmo em Generation of Swine, uma coletânea de suas colunas nos tempos de crítico de mídia no San Francisco Examiner, Thompson faz uso desta lógica: "Em vez de estar realmente opinando sobre a mídia, ele opiniava sobre o comportamento de algumas das mais famosas personalidades da época - Reagan, Bush, os Bakers, Qhadaffi e o resto da ‘escória’." (Othitis, 1994b)
e) Uso de sarcasmo e/ou vulgaridade como forma de humor
O escritor P.J. O'Rourke, amigo pessoal de Thompson, é quem diz, durante entrevista que realizou com o inventor do Gonzo Journalism para a Rolling Stone, em 1996:
Duas coisas separam Hunter Thompson da horda comum de profetas ansiosos da literatura moderna. Primeiro, Thompson é melhor escritor... Segundo, Thompson nos faz rir. Isso é uma coisa que é improvável que façamos durante a apresentação de... Esperando por Godot, ainda que estejamos tão doidões quando Raoul Duke. Hunter Thompson pega as questões mais sombrias da ontologia, os mais sérios questionamentos epistemológicos e, através da sua maneira de apresentá-los, nos contorce de rir, nossos corpos doendo do sovaco à virilha, nossos joelhos vermelhos de tanto levar tapas, cerveja espirrando de nossos narizes. Rimos tanto que, a qualquer momento, podemos vomitar como o advogado Samoano de 150 quilos. (1966, p.66).
A maior parte do tempo, Thompson está sendo sarcástico. Em Fear and Loathing in Las Vegas, é essencialmente nisso que se baseia a sua relação com o seu advogado constantemente drogado. O sarcasmo aparece aí em dois níveis: um primeiro, explícito nos diálogos e descrições; e um outro, mais profundo, que sugere que Thompson esteja o tempo todo sendo sarcástico consigo mesmo, ao fazer pouco caso do perigo real que representa fazer de bobo o seu advogado armado e perturbado pelas drogas. Em um dos muitos trechos em que o sarcasmo de Thompson pode ser identificado, o advogado está telefonando para Lucy, uma jovem e religiosa pintora de retratos que havia conhecido em um vôo e a quem havia oferecido LSD:
Ele ligou para o Americana e pediu o 1600. "Oi Lucy," ele disse. "Sim, sou eu. Eu recebi a sua mensagem... o quê? Não, droga, eu ensinei ao desgraçado uma lição que ele nunca esquecerá... o quê? ... Não, não está morto, mas não vai incomodar ninguém durante algum tempo... sim, eu o levei para fora; eu o pisoteei e depois arranquei todos os seus dentes..." Jesus, pensei. Que coisa terrível para se dizer a alguém com a cabeça cheia de ácido. (1971, p.129)
Um pouco antes, Thompson e o advogado mantêm a menina presa em seu quarto viajando de LSD, quando discutem o que vão fazer com ela:
"Bem..." Eu disse. "Quais são seus planos?”
"Planos?"
Esperávamos o elevador.
"Lucy" Eu disse.
Ele sacudiu a cabeça, tentando manter o foco na questão. "Merda", ele disse finalmente. "Eu a encontrei no avião e tudo que eu tinha era esse ácido" Ele murmurou. "Você sabe, aquelas pílulas azuizinhas. Jesus, ela é uma fanática religiosa. Ela está fugindo de casa, tipo, pela quinta vez em seis meses. É terrível. Eu dei as pílulas a ela antes de me dar conta... merda, ela nunca tinha nem bebido!"
"Bom," Eu disse, "provavelmente dará tudo certo. Nós podemos mantê-la drogada e prostituí-la na convenção de drogas".
Ele me encarou.
"Ela é perfeita para este serviço," eu disse. "Estes policias pagariam 50 paus por cabeça para cobrí-la de porradas e depois fazer uma suruba. Nós podemos colocá-la em um daqueles motéis de segunda, pendurar imagens de Jesus por todo o quarto e depois soltar estes porcos em cima dela... ela é toda forte, e sabe se cuidar" (Thompson, 1971, p.114-115)
Naturalmente, Thompson não pretendia de fato fazer da garota uma escrava sexual mas decidiu divertir-se com a situação às custas do seu advogado, que também se encontrava sob o efeito de várias doses de LSD. Seu senso de humor é bastante ácido e sombrio e ele dá crédito à sua mãe pelo seu desenvolvimento. O hilário em Thompson brota do impossível, absurdo e idiota: tanto em coisas que as pessoas dizem quanto em situações em que ele se coloca.
f) Tendência das palavras "fluirem" e um uso extremamente criativo do inglês
Para analisar melhor a presença desta característica, temos de recorrer a trechos retirados dos textos originais de Thompson, mas não é difícil perceber a verdade neste apontamento de Othitis. O segundo parágrafo do quarto capítulo de Fear and Loathing in Las Vegas é um bom exemplo desta característica:
I agreed. By this time the drink was beginning to cut the acid and my hallucinations were down to a tolerable level. The room service waiter had a vaguely reptilian cast to his features, but I was no longer seeing huge pterodactyls lumbering around the corridors in pools of fresh blood. The only problem now was a gigantic neon sign outside the window, blocking our view of the mountains - millions of colored balls running around a very complicated track, strange symbols & filigree, giving off a loud hum... (Thompson, 1971, p.27)
A construção vaguely reptilian cast to his features não é muito comum no inglês coloquial, demonstrando um certo grau de erudição do autor ao ser empregada. Features, sobretudo, é uma palavra utilizada para designar as partes do rosto de uma pessoa. Na frase, Thompson diz que o camareiro tem "formas vagamente reptílicas" nos elementos do seu rosto, o que poderia ser facilmente substituído por algo mais banal, como the room service waiter still looked a bit like a reptile, ou "o camareiro ainda parecia um pouco com um réptil".
O verbo lumbering com este sentido também não é de uso muito freqüente no idioma norte-americano. Neste contexto, lumber, segundo o Cambridge International Dictionary of English, quer dizer "mover-se lenta e deselegantemente" (1995, p.847).
Por fim, a presença incomum da palavra filigree, que refere-se a tanto um tipo de jóia feita de um arame prateado retorcido como, no sentido figurativo, a padrões decorativos. Além disso, todo o trecho quando lido em voz alta é extremamente sonoro, com a mistura de palavras de pronúncia mais entruncada como tolerable ou pterodactyls com outras mais abertas como pools, neon e a expressão loud hum.
g) Descrição extrema das situações
Thompson é um observador rigoroso, percebendo os pequenos detalhes que fogem à atenção da maioria das pessoas, e os aplicando à sua escrita de duas formas. A primeira é a descrição. Geralmente ele consegue expor todos os detalhes pertinentes a um objeto ou pessoa em duas ou três frases, enquanto cria uma representação visual muito forte daquilo que está descrevendo. Por exemplo, em Fear and Loathing in Las Vegas, o carro não é só um conversível vermelho, é um Grande Tubarão Vermelho. Lucy, a jovem pintora com a cabeça cheia de ácido é descrita desta forma no seu primeiro encontro:
Mas a porta atingiu algo que eu imediatamente reconheci como uma forma humana: uma garota de idade indeterminada com o rosto e o porte de um Pit Bull. Ela usava um vestido azul sem forma e os seus olhos estavam furiosos. (Thompson, 1971, p.110)
O Gonzo Journalism geralmente é mais focado na experiência do que no fato em si, e pequenos detalhes que parecem menos importantes acabam ganhando uma dimensão exagerada, como no trecho do primeiro capítulo de The Rum Diary:
Ir a um coquetel em San Juan era ver tudo que há de vulgar e ganancioso na natureza humana. O que passava por sociedade era um barulhento, estonteante redemoinho de ladrões e pretensas putas, um showzinho besta cheio de palhaços e idiotas e filisteus com mentalidades diminutas. É uma nova onda de Okies, indo em direção ao sul em vez do oeste, e em San Juan eles eram reis porque haviam literalmente tomado conta. (Thompson, 1999, p74).
A segunda forma é como ele analisa e interpreta a situação em que está inserido através de longos trechos de monólogo interno, como no capítulo 9 de Fear and Loathing in Las Vegas, no qual Thompson reflete sobre as conseqüências de seus atos desde que chegou à cidade:
Pânico. Ele percorreu minha espinha como as primeiras vibrações de uma viagem de ácido. Todas essas realidades horrendas começaram a amanhecer em mim: Aqui estava eu, completamente sozinho em Las Vegas com esse maldito carro incrivelmente caro, completamente chapado, sem advogado, sem dinheiro, sem matéria para a revista - e ainda por cima eu tinha uma maldita conta gigantesca de hotel para lidar. Dentro daquele quarto nós havíamos pedido tudo que mãos humanas poderiam carregar - incluindo cerca de seiscentas barras de sabonete transparente Neutrogena." (Thompson, 1971, p.70)
Comparando Thompson com Kurt Vonnegut, o crítico literário Jerome Klinkowitz parece ter capturado a essência da reportagem Gonzo:
Os cortes rápidos, o uso estratégico da digressão, a habilidade de se arremessar à narrativa como um piloto de testes, controlando as derrapagens de modo que a mais improvável das intenções resulte nas manobras mais suaves, a atitude de fazer com que a loucura pessoal de um indivíduo esmaeça frente a vida americana contemporânea - tudo isso demonstra que Thompson e Vonnegut compartilham de uma afinidade. (apud Carroll, 1993, p.302).
Ao contrário de outros formatos mais rígidos, o Gonzo Journalism encontra dificuldades em ser definido com precisão por ser personalizado de acordo com as demandas e expectativas do escritor. Esta afirmação não se relaciona apenas com o fato de Thompson ser o principal autor do gênero - e, como tal, ditador da maioria dos seus conceitos e princípios -, mas também com a anarquia e libertinagem que o gênero permite, uma vez que não existem regras. Gonzo é uma mistura de fato e ficção, escrito em um estilo instintivo e cativante. Usando a definição do jornalista norte-americano Mitch Moxley no artigo Gonzo! Confessions of a Hunter S. Thompson Junkie, basicamente, o autor escreve "o que ele quer e o que ele vê". (2001)
Algumas definições para Gonzo aparecem em dicionários modernos e quase todas relacionam-se com o caráter estranho do gênero. Para o Cambridge International Dictionary of English, gonzo é uma gíria usada nos Estados Unidos e Austrália para definir um estilo de escrever "estranho e incomum". O Encarta Word English Dictionary também considera gonzo uma gíria, definida da seguinte forma: "1. Idiossincraticamente subjetivo; caracterizado por interpretação subjetiva e exagero; Gonzo jornalism é diferente do trabalho do observador imparcial. 2; não-convencional, não-usual ou estranho". O Oxford English Dictionary define gonzo como "um estilo de jornalismo subjetivo engajado, caracterizado pela distorção factual e retórica exagerada". Já o Merriam-Webster Dictionary diz que gonzo é "idiossincraticamente subjetivo, porém engajado" e também o considera sinônimo de "bizarro".
É importante ressaltar que a palavra engajado aqui vem da tradução de dois temos diferentes. Na definição do Oxford English Dictionary, ela origina-se da palavra committed, cuja tradução mais aproximada seria algo como comprometido. No Merriam-Webster Dictionary a palavra é uma tradução do termo engagé, que serve para designar uma pessoa interessada em política (especialmente escritores, músicos e artistas em geral).
Sobre gonzo, outros autores como o jornalista norte-americano Peter Genovese afirmam que "é suficiente dizer que é um estilo literário que tem poucos praticantes, ainda menos qualidades de redenção social e nenhuma regra". Já Mitch Moxley diz que:
Gonzo é a verdade através dos olhos do autor, que escreveu a história como um personagem. De fato, a busca do autor pela verdade torna-se a história. É altamente subjetivo, onde opiniões ilusórias tem valor; é agressivo e as pessoas retratadas freqüentemente são esquartejadas no papel. (2001)