Wednesday, October 05, 2005

2. JORNALISMO GONZO NO BRASIL

O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; as dinastias são a primeira forma de medi-lo. A escrita é sua arma. Na escrita, a linguagem atinge sua plena realidade independente de mediação entre as consciências. Mas essa independência geral do poder separado, como mediação que constitui a sociedade. Com a escrita aparece uma consicência que já não é sustentada e transmitida na relação imediata dos vivos: uma memória impessoal, que é a administração da sociedade.
Guy Débord - A Sociedade do Espetáculo (1968)


2.1. Precursores do jornalismo gonzo no Brasil

2.1.1. Memórias de um repórter X

Figura lendária do jornalismo português, Reinaldo Ferreira teve, nas primeiras décadas do século passado, lugar de grande evidência. Afirmou-se, fundamentalmente, como repórter. Atraído para o macabro, o fantástico, os labirintos das grandes questões sociais, deu um cunho peculiar à reportagem. Utilizava todas as manhas e expedientes para arrancar a face oculta do cotidiano e revelá-la em primeira mão e de um modo original e audacioso.

Era capaz de de se intrometer nos bastidores das conspirações e nas trincheiras de combate; violar o sigilo dos tribunais, das polícias e antecâmeras militares; penetrar na escumalha das prisões, nos gabinetes políticos nos salões das embaixadas e na atmosfera sórdida dos bairros exceêntricos. Uma das suas proezas foi disfarçar-se de mendigo para escrever um inquérito exaustivo sobre a verdadeira e falsa pobreza.
Nasceu em Lisbôa em 11897 e faleceu em 1935. Tinha 37 anos e 22 de profissão. Envolveu-se por completo na droga de que nunca conseguiu se libertar e que o tornou um farrapo humano. Assim como Hunter Thompson era conhecido sob a alcunha de ''Raoul Duke'', Reinaldo Ferreira assumiu o apelido ''Repórter X'' depois uma confusão para se entender sua caligrafia, o que obrigou um tipógrafo a lhe assinar como os textos como ''Repórter X''.
Não se pode atribuir a Reinaldo Ferreira qualquer evidência na história da literatura. Fora os livros e revistas policiais publicados tanto em Portugal como no Brasil, a sua ficção oscila entre a digressão romântica e certo tipo de intenção social. Isso facilitou seu alcance às preocupações e ao gosto de um público determinado.
Uma questão fundamental na vida e obra de Reinaldo Ferreira é esclarecer o que se deve situar antes e depois do consumo permanente da droga. Ele é internado, em finais de 1932, para uma cura de desintoxicação. Meses depois decide confessar a sua morfinomania nas páginas do "Repórter X", dando também à estampa o primeiro volume - e o único que publicou em vida - das "Memórias de um ex-morfinómano", obra que tem a força de um documento humano patético.

Mesmo antes do recurso sistemático à toxico-dependência, para se evadir deste drama íntimo e excitar a capacidade de trabalho e o poder de efabulação, Reinaldo Ferreira teve sempre uma tendência para inveterada para transfigurar a objetividade das situações cotidianas.

Pouco resta, hoje, desta obra que transgride os códigos deontológicos, que surpreendem em flagrante os conflitos e mistérios da alma humana. As Memórias de Um Ex-Morfinómano são o espelho de uma vida de extremos:
Os episódios melhor gravados no doloroso friso do meu morfinismo relacionam-se com a viagem que realizei, em outubro de 1930, a Londres (...) Azougava-me o entusiasmo profissional pela viagem, mas, com sempre sucede nos toxicómanos que se deslocam, acorvadava-me, num pavor, a ameaça de que pudesse sofrer a falta da droga em terra estranha (...) Em Dover, entro na alfândega. Os aduaneiros ingleses procedem... à inglesa! Antes de vasculharem as bagagens – ou de apalparem os viajantes – apresentam-lhes um quadro onde, em letras garrafais, estão indicados todos os artigos indicados pela lei. Depois perguntam:
– Traz consigo algum desses artigos.
Só depois – revistam as malas e os fatos! Creio que este sistema objectivo agrava a culpa ao desobediente, por tentativa de logro – quando surprrendem o contrabando... Que se visione o que seria a minha aterrorizada angústia ao ler a palavra morfina – encabeçando a lista que o aduaneiro me apresentou fitando-me nos olhos, perscrutando-os, como se suspeitasse de que mentia...

Além das suas reportagens, entre as quais se contam fascinantes visões futuristas do Porto e Lisbôa do ano 2000, Reinaldo Ferreira deixou ainda uma quantidade assombrosa de novelas, sobretudo policiais e de espionagem, além de várias peças de teatro.

1 Comments:

Blogger brunatiussu said...

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9:32 AM  

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