Wednesday, October 05, 2005

1.2. Talese, Wolfe e Breslin e o surgimento do New Journalism

No começo dos anos 60, "um novo e curioso conceito, vivo o bastante para inflamar os egos, havia decidido invadir os diminutos confins da esfera profissional da reportagem. Esta descoberta (...) consistiria em tornar possível um jornalismo que... fosse igual a um romance."(Wolfe, 1976, p.18) Era a mais sincera forma de homenagem ao romance que os jornalistas podiam prestar, sem nunca deixar de ter claro que a representação do artista soberano na literatura era o escritor.
Em 1962, Gay Talese publicou na Esquire uma história sobre o lutador de boxe Joe Louis cujo título era "Joe Louis: o Rei como Homem de Meia Idade" (apud Wolfe, 1976, p.19), que fugia totalmente dos padrões jornalísticos vigentes na época, assemelhando-se muito mais a um relato que a uma matéria jornalística propriamente dita, como demonstra o trecho que abre o artigo:
- Olá, querida - gritou Joe Louis a sua mulher ao vê-la o esperando no aeroporto de Los Angeles. Ela sorriu enquanto aproximava-se e quando estava a ponto de ficar na ponta dos pés para lhe dar um beijo, deteve-se de pronto.
- Joe, onde está sua gravata? - perguntou.
- Ai, querida - ele desculpou-se encolhendo os ombros - estive fora toda a noite em Nova York e não tive tempo... (...) (Talese apud Wolfe, 1976, p.19)
Devido ao uso de passagens explicativas, descrição de cenas e diálogos, o texto de Talese poderia "transformar-se em um conto com muito pouco trabalho" (Wolfe, 1976, p.20), o que passava uma sensação de estranheza a quem lesse o artigo publicado sob a égide de "trabalho jornalístico" por conter informações normalmente dispensadas na redação de uma matéria de caráter informativo, como a pequena discussão entre o lutador e a sua esposa no aeroporto, por exemplo.
Na verdade, a cena onde o temido boxeador encontra-se com a mulher e que, a primeira vista, parece dispensável serve para que o leitor construa uma imagem mais precisa da dimensão humana de Joe Louis, que apesar de ser um campeão mundial dos pesos-pesados, encolhia os ombros diante da mínima reação irritadiça de sua mulher.
Ao ler o texto de Talese, o próprio Wolfe experimentou essa sensação que, ironicamente, seria a principal arma dos críticos do New Journalism nos anos seguintes. "Deus meu, talvez tenha inventado cenas inteiras, o mentiroso sem escrúpulos..." (Wolfe, 1976, p.21).
Algum tempo depois da publicação do perfil de Louis, Jimmy Breslin ganhou uma coluna no Herald Tribune. Receber a tarefa de escrever uma coluna foi e ainda é considerada uma promoção dentro das lides do jornalismo. Funciona como uma espécie de reconhecimento dos bons serviços desempenhados no campo da reportagem. Breslin havia publicado centenas de artigos em revistas como a True, Life e Sports Illustrated mas, segundo Wolfe, na época, lançar-se como colaborador independente de revistas populares era a melhor maneira de permanecer anônimo. Breslin ganhou a vaga graças ao interesse que seu livro, Can't Anybody Here Play This Game, despertou em Jock Whitney, então editor do Herald.
Segundo o próprio Wolfe, toda vez que um especialista em reportagem ganhava uma coluna, "se perdia um bom repórter e se ganhava um mal escritor" (Wolfe, 1976, p.22), posto que a maioria delas representava um estilo preguiçoso de se fazer jornalismo, como no trecho:
As colunas dos jornais tinham se convertido em uma ilustração clássica da teoria de que as organizações tendem a elevar as pessoas aos seus níveis de incompetência. (...) O arquétipo dos colunistas de jornais era Lippman. Durante 35 anos, Lippman aparentemente não fez outra coisa que ingerir o New York Times todas as manhãs, fagocitá-lo em sua ponderativa cacunda durante uns quantos dias para rapidamente ejetá-lo metodicamente sob a forma de uma gota de saliva perante várias centenas de milhares de leitores de jornais nos dias seguintes. A única reportagem de verdade que lembro-me de Lippman ter feito foi a visita protocolar a um chefe de estado (...) (Wolfe, 1976, p.21-22)
Os colunistas de jornal, de uma forma ou outra, acabavam sub-aproveitando a liberdade literária de que gozavam, pois se lançavam com grande material, despejando fragmentos interessantes de vidas alheias por cerca de "oito a dez semanas" (Wolfe, 1976, p.22) até perderem o fôlego e encontrarem-se encurralados em temas tão pessoais quanto "as coisas engraçadas que aconteceram perto de sua casa outro dia, brincadeiras caseiras (...), um livro ou artigo fascinante que tenham estimulado sua imaginação, ou sobre qualquer coisa que tenham visto na televisão" (Wolfe, 1976, p.22-23).
Breslin, entretanto, promoveu uma verdadeira revolução no jeito como se escreviam as colunas de jornais. Durante os primeiros anos, seu trabalho gerou controvérsia tanto entre jornalistas quanto literatos. Sua descoberta revolucionária foi, na verdade, bastante óbvia: ele continuou trabalhando como repórter. Wolfe destaca um artigo que Jimmy Breslin escreveu sobre a condenação de um chefão do Sindicato dos Caminhoneiros acusado de extorsão chamado Anthony Provenzano, fazendo questão de atentar para os detalhes que ajudaram a construir a história, como a descontração antes do julgamento indicada pelo tapa que deu no braço de um amigo e o suor no lábio superior ao ouvir a sentença. O diamante que refletia a luz do sol no anel de Anthony foi usado como fio condutor de toda a narrativa, que encerrava observando que o fiscal que trabalhou para a condenação de Tony Pro não trazia nada que brilhasse em suas mãos.
Pareciam desconhecer em absoluto uma parte crucial do trabalho de Breslin: isto é, seu trabalho como repórter. Breslin transformou em costume chegar ao cenário muito antes do acontecimento com o fim de recolher material ambiental (...) que lhe permitiam criar um personagem. Do seu modus operandi fazia parte a coleta dos detalhes novelísticos - os anéis, a transpiração, as palmadas no ombro - e o fazia com mais habilidade que muitos romancistas. (Breslin apud Wolfe, 1976, p.25)
Tom Wolfe fez a sua primeira incursão neste híbrido jornalístico-literário em 1963, com a publicação, na Esquire, de Aí vem (Vruum! Vruum!) Este Carrinho Bonitinho Aerodinâmico (Rahghhh!) Fluorescente (Thphhhhhh!) Fazendo a Curva (Brummmmmmmmmmmmmmmm!). Era um artigo totalmente fora dos padrões de forma e conteúdo no jornalismo da época. Wolfe misturou rascunhos e esboços desleixados com erudição formal, usou conceitos da sociologia, epítetos e lamentos, tudo costurado de uma forma bastante tosca.
Para Wolfe o mais interessante não era a sensação de ter feito algo novo em jornalismo mas sim a descoberta de que era possível fazer descrições muito fiéis da realidade usando técnicas habitualmente utilizadas no conto e no romance, que serão descritas posteriormente neste trabalho. Isso significa que um artigo jornalístico poderia valer-se de qualquer recurso literário para cativar o leitor tanto pelos argumentos quanto pelo lado emocional.
Entre 1963 e 1964, Wolfe escreveu diversos artigos para a Esquire mas a maior parte de seus textos acabou sendo publicada no New York, suplemento dominical do Herald Tribune. Uma vez que os suplementos dominicais não tinham maiores pretensões, Wolfe sentiu-se tentado a fazer experimentos em seus artigos, aplicando recursos literários como a mudança do ponto de vista, o monólogo interior, citações literais de diálogos inteiros e caracterização de personagens, além da criação de novas funções para narradores até então seguidores de uma tradição de neutralidade dentro do jornalismo. Estas são precisamente as principais características do New Journalism no tocante à escrita do texto. Mas as propostas de renovação não ficavam apenas no tocante à redação dos artigos:
Estou certo de que outros que faziam experiências em artigos de revistas sentiam o mesmo, como Talese. Estavam ultrapassando os limites convencionais do jornalismo, mas não simplesmente no que se refere à técnica. A forma de coletar material que estavam desenvolvendo era também muito mais ambiciosa. Era mais intensa, mais detalhada (...) (Wolfe, 1976, p.34-35)
Naturalmente, este tipo de reportagem exigia um trabalho de coleta de dados muito mais intenso, minucioso e, por conseguinte, demorado do que se aplica normalmente. Os praticantes do New Journalism desenvolveram a particularidade de dispensar grande tempo para cobrir cada história, chegando a passar dias - e, em alguns casos, até mesmo semanas - com as pessoas sobre as quais escreviam, outro aspecto que será discutido mais adiante neste trabalho. Wolfe estava cada vez mais convencido de haver criado o híbrido ideal entre o jornalismo e a literatura, enquanto Gay Talese formula que:
O novo Jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser, tão verídico, como a mais exata das reportagens, buscando embora uma verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações, a adesão ao rígido estilo mais antigo. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem e consente que o escritor se intrometa na narrativa se o desejar, conforme acontece com freqüência, ou que assuma o papel de observador imparcial, como fazem outros, eu inclusive. Procuro seguir discretamente o objeto de minhas reportagens, observando-o em situações reveladoras, anotando suas reações e as reações dos outros a eles. Tento absorver todo o cenário, o diálogo, a atmosfera, a tensão, o drama, o conflito e então escrevo tudo do ponto de vista de quem estou focalizando, revelando inclusive, sempre que possível, o que os indivíduos pensam nos momentos que descrevo. Esta visão interior só pode ser obtida, naturalmente, com a plena cooperação do sujeito, mas se o escritor goza da confiança daqueles que focaliza, isto se torna viável por meio de entrevistas, onde a pergunta certa é feita no momento exato. É assim possível saber e registrar o que se passa na mente das pessoas". (Talese, apud Ungaretti, 2001)
Neste ponto, tanto Talese como o próprio Wolfe concordavam que a principal vantagem de uma imersão tão pronunciada no objeto de suas reportagens era justamente o de poder oferecer uma descrição objetiva completa, onde a vida subjetiva e emocional dos personagens fosse um elemento a ser considerado. O jornalista Sérgio Villas Boas, em seu artigo Jornalismo Literário e o Texto em Revista, publicado no site Jornalite - Portal de Jornalismo Literário no Brasil fala sobre a necessidade da presença do jornalista na ação, para que a captação das sutilezas fosse o mais acurada possível: “Era primordial estar no lugar onde ocorriam cenas dramáticas para captar conversas, gestos, expressões faciais, detalhes do ambiente etc.; revelar os bastidores da matéria tanto quanto as impressões do repórter sobre o personagem.” (2002)
Outra característica marcante nos textos do New Journalism é o uso de figuras de pontuação pouco convencionais no jornalismo, como reticências e exclamações, além de interjeições, onomatopéias e palavras sem sentido.
Ainda que não seja reconhecido como um movimento literário pelos próprios protagonistas, foi assim que o New Journalism entrou para a história. Uma vez batizado e reconhecido como fenômeno, o New Journalism adquiriu um caráter de legitimidade e, portanto, começou a ser pesquisado e conceituado por diversos autores, como Tom Wolfe, Mark Kramer e Edvaldo Pereira Lima. Antes de definir o que é New Journalism, contudo, é importante fazer a observação de que não se trata de um gênero absolutamente inédito e sim parte da evolução da literatura que busca inspiração na literatura de realismo social, na literatura de relato e nas manifestações literárias com caráter factual e informativo - e portanto, jornalístico, que convencionou-se chamar, modernamente, de Jornalismo Literário, caracterizado pelo uso de técnicas da literatura na captação, redação e edição de reportagens e ensaios jornalísticos. Edvaldo Pereira Lima, no texto New Journalism X Jornalismo Literário, publicado no site Jornalite - Portal de Jornalismo Literário no Brasil, diz que:
O new journalism americano foi a manifestação de um momento do Jornalismo Literário. Isso quer dizer que o JL, enquanto forma de narrativa, de captação do real, de expressão do real já existia antes e continua existindo após o new journalism, que foi só uma versão específica do JL, mas uma versão radical quando comparada à anterior, principalmente, no que se refere à capacidade do narrador se envolver com o universo sobre o qual vai escrever. (2002)
A influência que a literatura de ficção européia do século XIX exerce sobre o New Journalism é verificada especialmente na forma com que o material é coletado. A escola do realismo social caracterizou-se pelas longas e detalhadas pesquisas de campo que os escritores faziam antes de escrever. No artigo Apontamentos Breves Para Uma Futura História do Jornalismo Literário, também publicado no site Jornalite, Edvaldo Pereira Lima afirma que "Suas histórias nasciam dessa observação minuciosa da realidade" (2002). Antes de escrever um livro, o escritor inglês Charles Dickens realizava extensas pesquisas sobre a linguagem, os tipos humanos e os costumes de pessoas pertencentes às classes marginalizadas. Já o francês Honoré de Balzac celebrizou-se pelo alto nível de detalhamento que conferia às suas descrições de ambientes.
Estas duas peculiaridades literárias influenciaram diretamente as técnicas aplicadas no New Journalism, definido por Gay Talese da seguinte forma em entrevista para o Jornal do Brasil:
New journalism (ou narrative writing, que seja) quer dizer apenas escrever bem. É um texto literário que não é inventado, não é ficção, mas que é narrado como um conto, como uma seqüência de filme. É como um enredo dramático digno de ser levado aos palcos e não apenas um amontoado de fatos, fácil de ser digerido. (2000)
Para a professora da Faculdade Cásper Líbero Nanami Sato, as principais características usadas para definir se um texto é representante do New Journalism são as seguintes:
A construção cena a cena; a reprodução do diálogo das personagens; a exploração das variadas possibilidades expressivas do foco narrativo (inclusive com o emprego do fluxo de consciência, como nos melhores romances psicológicos); o registro de gestos, cotidianos, hábitos, modos, estilo de decoração, roupas, comportamento e outros detalhes simbólicos, para reforçar a aparência da realidade. (apud Lucas Toyama, 2002)
Sérgio Vilas Boas define um pouco melhor as técnicas usadas pelos praticantes do New Journalism no trecho a seguir, extraído de seu supracitado artigo Jornalismo Literário e o Texto em Revista:
Inseriam diálogos - sim, com travessões e tudo. Faziam descrições minuciosas - de lugares, feições, objetos etc. Alternavam o foco narrativo: o narrador podia ser observador onipresente, testemunha e/ou participante dos acontecimentos. Além disso, podiam penetrar na mente dos seus personagens reais, reconstituir seus pensamentos, sentimentos e emoções com base em pesquisas e entrevistas verdadeiramente interativas. (2002)
Em seu livro The New Journalism, Tom Wolfe enumera os quatro principais procedimentos literários aplicados no New Journalism: a construção cena a cena, o uso de diálogos, o ponto de vista na terceira pessoa e os símbolos de status. Segundo Wolfe, estes quatro fundamentos seriam responsáveis pela força extraordinária que faz com que um texto torne-se apaixonante para quem o lê.
A construção cena-a-cena, o uso de símbolos de status e diálogos estão intimamente ligados às técnicas de captação de dados. É fácil perceber que para serem capazes de reproduzirem com maior fidelidade os acontecimentos e diálogos que constroem uma história, os jornalistas da época viam-se obrigados a participar efetivamente da vida dos seus personagens. Para escrever O Duque em seus Domínios, o famoso perfil de Marlon Brando para o The New Yorker, em 1956, Capote tornou-se tão próximo do ator que ele acabou esquecendo da sua condição de jornalista e acreditou que havia se estabelecido uma relação de amizade entre os dois. "Aquele pequeno canalha passou a metade da noite contando os seus problemas. Achei que o mínimo que poderia fazer era contar-lhe os meus" (Brando apud Instituto Gutenberg, 1998).
Quanto ao uso dos diálogos podemos afirmar que a sua presença, além de aproximar o formato do texto jornalístico ao de uma obra de ficção como o conto ou o romance, torna o ritmo da leitura mais agradável e, portanto, tem um poder muito maior de persuasão. Sobre este aspecto, Wolfe afirma que:
Os escritores de revistas, como os primeiros romancistas, aprenderam a base de algo que desde então tem sido demonstrado nos estudos acadêmicos: isto é, que o diálogo realista cativa o leitor de forma mais completa que qualquer outro procedimento individual. (1976, p.50)
Além disso, os diálogos ajudam a compor com maior profundidade os personagens históricos ou tipificados, uma vez que através da sua linguagem, maneirismos e reações é possível informar muito mais e de maneira muito mais direta e precisa ao leitor do que por meio de descrições.

Quanto ao uso do ponto de vista na terceira pessoa, ele serve principalmente para dar ao leitor a sensação de estar presente na cena que está sendo descrita, experimentando as sensações através da focalização em uma personagem em particular, com a qual deve, necessariamente, identificar-se. Isto demonstra o quanto é importante a habilidade do autor em fazer com que os seus personagens despertem empatia nos seus leitores, justificando assim o emprego das outras duas técnicas supracitadas.

O uso do ponto de vista na terceira pessoa permite também ao autor que varie o foco narrativo sem causar estranheza e nem pôr em risco a credibilidade do seu texto. Em um texto jornalístico (ou seja, claramente não-ficcional) escrito em primeira pessoa, seria impossível acreditar na hipótese de reproduzir com precisão os pensamentos de uma outra pessoa. Através de uma intensa bateria de entrevistas com cada personagem, contudo, é possível extrair-lhes confissões, segredos e outras particularidades de suas personalidades para, posteriormente, utilizar estas informações na confecção do texto.

A intensa descrição de gestos, hábitos e outras particularidades dos personagens não é gratuita e a sua função não se limita a enriquecer e enfeitar a narrativa. Vem a ser mais um recurso que demanda uma pesquisa bastante atenta e reverte-se em elementos que ajudam a aprofundar ainda mais o nível de informação que o leitor recebe sobre determinado personagem. Os símbolos de "status da vida" (Wolfe, 1976, p.51) ajudam o leitor a compreender melhor o lugar em que o personagem está situado no mundo. As descrições tanto de ambientes quanto de comportamentos são, em geral, bastante ricas, de modo a informar ao leitor o máximo possível.

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