2.1.2. O idealismo técnico de Euclides da Cunha
"Canudos caiu, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados", noticiou o jovem jornalista.
7 de agosto de 1897. O engenheiro e repórter Euclides da Cunha chega a Queimadas, no interior baiano, para onde fora enviado pela direção do jornal O Estado de S. Paulo. Sua missão: relatar aos leitores do jornal os horrores da chamada Guerra de Canudos, um dos episódios mais dramáticos da história brasileira.
Desde julho daquele ano, uma campanha do governo central tentava sufocar o movimento deflagrado em Canudos. No vilarejo do sertão baiano, encravado às margens do rio Vaza-Barris, o messiânico Antônio Conselheiro exortava o povo a resistir à República e, com o auxílio dos povoados vizinhos, enfrentava as tropas do exército brasileiro à base de emboscadas e pregações religiosas. O resultado foi uma tragédia sem precedentes.
Durante dois meses, até a batalha final, o jovem Euclides escreveu e enviou ao jornal 25 reportagens. Na medida em que eram publicadas, tais reportagens ajudavam a consolidar um relato estarrecedor de um privilegiado espectador em pleno campo de batalha. De volta a São Paulo, com suas convicções republicanas seriamente abaladas, Euclides da Cunha foi convencido e estimulado pela direção do Estado de S. Paulo a escrever o livro que viria a se tornar um dos maiores clássicos da literatura nacional. Os Sertões, foi lançado em dezembro de 1902, em uma edição com apenas 2 mil exemplares. Foi o bastante para garantir à obra e ao seu autor um reconhecimento que ultrapassou as fronteiras do País. Um livro grosso, com 637 páginas de textos com vocabulário incomum, temas científicos e grande carga dramática, ilustrado com mapas, desenhos e fotografias, onde Euclides da Cunha narrava a batalha ocorrida em Canudos, na Bahia. A obra transformou-se rapidamente num best seller, tendo metade de sua edição vendida em apenas oito dias. O total de sua tiragem se esgotou em dois meses.
O professor Roberto Ventura, em sua biografia de Euclides da Cunha, define: "Em Euclides, tivemos um militar e um republicano desiludidos e um escritor notável." Ele acredita, porém que Os Sertões foi elevado à categoria clássico mais por suas qualidades sociológicas do que literárias. "O que fez com que Os Sertões prevalecesse sobre outros relatos a ele contemporâneos, como o do jornalista Manuel Benício, enviado a Canudos pelo Jornal do Comércio, é o fato de ele ter conseguido integrar a guerra a uma interpretação histórico-cultural extremanente complexa no Brasil", escreve. "Canudos se tornou, com a interpretação de Euclides, o símbolo de um processo de modernização que se dá através de violentos choques culturais e políticos. Sem isso, ela seria mais uma comunidade ou um movimento messiânico massacrado e dizimado por tropas do governo", analisa o biógrafo.
Aguardando ainda, contrafeito, a proxima partida para o sertão, percorro - desconhecido e só - como um grego antigo nas ruas de Bysancio as velhas ruas desta grande capital, num indagar persistente ácerca de suas bellas tradições e observando a sua feição interessante de cidade velha chegando, intacta quasi, do passado a estes dias agitados. E lamento que o objectivo capital e exclusivo desta viagem me impeça estudal-la melhor e transmitir as impressões recebidas. Porque é realmente inevitavel esta intercurrencia de sensações extranhas e diversas, invadindo de modo irresistivel o assumpto e programma preestabelecidos.
Numa hora assaltam-me, às vezes, as mais desencontradas impressões. Visitando, ha pouco, o mosteiro de S. Bento, por exemplo, onde se accumulam agóra os feridos que chegam, depois de atravessar por entre extensos renques de leitos contristadores, desci ao pavimento inferior.
Atravessei as naves extensas, cautelosamente, a passos calculados, olhos fixos no chão, procurando não pisar as lagens tumulares sobre as quaes indifferentes pisam todos os devotos e onde se leem, ainda, semi-apagadas pelo attrito persistente das botas, nomes entre os mais velhos da nossa historia. - E despeando-me de todo do objectivo que me levara até alli -, acurvado sobre as lousas que apparecem como palimpsestos de marmore mal descobertos memmorando remotissimos dias, permaneci largo tempo, absorto.
Na época do lançamento de Os Sertões, o mercado editorial no Brasil era incipiente e dominado por editores franceses e portugueses. O campo literário se concentrava na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, então capital federal. No centro comercial, duas livrarias se destacavam: a Garnier e a Laemmert, que dividiam o mercado de livros, dando prioridade à publicação de literatura.
Em um ambiente cultural fechado, os novatos tinham dificuldades em publicar seus livros. Deviam ganhar a simpatia de Machado de Assis, que já naquela época tinha grande prestígio no meio literário, ou dos poucos editores da capital federal. Outra saída era publicar suas histórias em capítulos nos jornais do Rio ou nas capitais mais importantes, como São Paulo. Fora dessas opções, ou até mesmo para atingi-las, deveriam freqüentar livrarias, cafés, salões e confeitarias, para divulgar seus trabalhos, recitando seus poemas, declamando suas crônicas ou lendo os capítulos dos livros que escreviam.
Euclides da Cunha não era do tipo que freqüentava as rodas literárias da Rua do Ouvidor, nem tinha proximidade com nenhum escritor consagrado. Militar e engenheiro, nunca havia escrito um livro, tinha apenas artigos, poemas e ensaios publicados no jornal O Estado de S. Paulo. Estimulado pelo diretor Julio Mesquita a transformar em livro a cobertura de Canudos, recorreu ao amigo Garcia Redondo, que preparou uma carta apresentando-o a Lúcio de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que, por sua vez, entrou em contato com os editores.
A Laemmert concordou em publicar Os Sertões, com a condição de que ele contribuísse com os custos da edição. Euclides comprometeu-se em desembolsar um conto e quinhentos mil réis (o que correspondia a dois meses de seu salário) para as despesas de impressão, sendo metade paga no ato da assinatura do contrato e o resto até o prazo em que deveria ficar pronta a obra, previsto no início para 30 de abril de 1902. A contribuição financeira do autor valia apenas para a primeira edição.
Temendo uma represália dos militares, pois seu livro contava fatos antes omitidos sobre o incidente em Canudos, e preocupado com uma crítica desfavorável, Euclides da Cunha decidiu fazer uma viagem a cavalo pelo interior de São Paulo alguns dias antes do lançamento. Na volta, encontrou duas cartas de seu editor. Na primeira, ele se dizia arrependido pela publicação e lamentava o possível fracasso do livro. Receoso, o escritor abriu a segunda carta. O editor tinha mudado de idéia. Contava que Os Sertões havia sido publicado e já era um sucesso.
José Veríssimo, em ensaio publicado no Correio da Manhã, no dia seguinte à chegada de Os Sertões às livrarias, considerou que:
O livro do Sr. Euclides da Cunha, ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem e estremece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os sertões do Norte brasileiro, venha da estupidez ou da maldade dos homens, como a Campanha de Canudos.
Em seu texto pequeno, mas contundente, fez apenas uma ressalva: considerou exagerado o emprego de termos técnicos.
Em março de 1903, o Jornal do Commercio trazia a crítica de Araripe Júnior que, além de mais longa e elaborada, demonstrava maior entusiasmo. Para ele, pela primeira vez aparecia um trabalho interessante partindo do tema de Canudos.
Pareceu-me chegar à conclusão de que Os Sertões são um livro admirável, que encontrará muito poucos, escritos no Brasil, que o emparelhem - único no seu gênero, se atender-se a que reúne a uma forma artística superior e original, uma elevação histórico-filosófica impressionante e um talento épico-dramático, um gênio trágico como muito dificilmente se nos deparará em outro psicologista nacional.
Sílvio Romero, outro crítico literário importante do período, destacou a repercussão que teve o surgimento de tal obra em 1902: "de Euclides da Cunha se pode dizer que se deitou obscuro e acordou célebre com a publicação de Os Sertões. Merecia-o." Romero referia-se ao fato do autor, um estreante na ocasião, ser repentinamente considerado um dos escritores mais consagrados da capital federal.
Euclides da Cunha acompanhou de perto a publicação da primeira edição do livro. Em maio de 1902, recebeu da Livraria Laemmert as primeiras páginas impressas de Os Sertões. Em outubro, na editora, Euclides encontrou 80 erros em seu livro. Corrigiu cada exemplar, um a um, manualmente com canivete e tinta nanquim.
A segunda edição foi lançada em 9 de junho de 1903, com uma tiragem de dois mil exemplares. Em 1905, surgiu a terceira edição, também com dois mil exemplares. As três edições foram vendidas em aproximadamente cinco anos, fazendo de Os Sertões um dos maiores sucessos de venda no restrito mercado livreiro do início do século XX no Brasil.
Para a terceira edição, Euclides da Cunha cedeu a "propriedade plena e inteira" de Os Sertões à Laemmert & Cia por um conto e oitocentos mil réis e garantiu que, de cada edição que se fizesse, cinqüenta volumes lhe seriam reservados. Embora este fato cause estranheza, uma vez que o livro continuava a ser um sucesso de vendas, o escritor passava por dificuldades financeiras, reveladas em carta a seu pai. A Laemmert não chegou a fazer uma quarta edição, pois um incêndio destruiu suas instalações. A quarta edição do livro saiu em 1911, pela Editora Francisco Alves.
O convite feito por Julio Mesquita ao poeta e engenheiro militar fluminense Euclides da Cunha para acompanhar o ministro da Guerra a Canudos, na qualidade de repórter, trouxe ao Brasil uma nova informação: a informação de si mesmo.
O País estava com os olhos embaçados pelos estremecimentos que abalavam o fim do século e não conseguia olhar-se com isenção e clareza. Euclides fez isso de modo dilatado e encantado. De tal forma que, hoje, sua obra ainda ilumina a compreensão da aventura humana no Brasil, desvendando, nas camadas profundas da nossa estratificação étnica, o encontro de brancos, pretos, índios, cafusos, mamelucos e mestiços de toda ordem, com uma terra variável no solo, no clima, nas latitudes e longitudes, na flora e na fauna, no deslumbramento de uma beleza matizada por contrastes e confrontos.
O fim do século encontrou o Brasil no início da República: uma pequena nação envolta em dissidências políticas, militares e sociais, engolfada pela bancarrota, atacada pela febre amarela, cobiçada pelo expansionismo colonialista europeu, enfrentando uma guerra civil no Sul, gritos separatistas e convulsões que explodiam em múltiplos pontos de seu enorme território.
Uma dessas convulsões, a insurreição de Canudos, ocorreu logo depois de apagadas as brasas da Revolução Federalista, conjugada à Revolta da Armada - quando, entre outros episódios, um caudilho desvairado, Gumercindo Saraiva, saiu da fronteira uruguaia, atravessou Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, chegando até Jaguariaíva, para atacar São Paulo "sem deixar prisioneiros", degolando os que fazia pelo caminho e os abandonando, sem sepultura, com o signo gaúcho da "corbata colorada": boca fechada e língua pendurada no peito, saindo pelo corte da garganta.
A primeira tropa enviada a Canudos, com 500 soldados, sofreu inesperado revés e retirou-se inteiramente desarticulada. Outra coluna militar - infantaria, cavalaria e artilharia -, com mil homens sob o comando do coronel Moreira César, foi destroçada.
Canudos transformara-se em questão de honra. E nova tropa foi remetida para o sertão: 6 mil homens sob o comando do general Artur Oscar, florianista, que se destacara nas campanhas do Sul. Mas a sorte continuava adversa. Então, Prudente de Morais nomeou ministro da Guerra o marechal Carlos Machado Bittencourt, um paulista, que logo embarcou para a Bahia.
Euclides da Cunha foi junto. A luta se metodizou e tomou feição técnica. Os jagunços defenderam-se como loucos. Na tarde de 5 de outubro de 1897 Canudos caiu, "quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram", anotou Euclides. "Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados." Festejadas, as tropas retornavam do triste arraial baiano. Em 5 de novembro, o presidente foi assistir ao desembarque de um contingente que regressava. Saindo da multidão, um nordestino rompeu o círculo das autoridades e alvejou Prudente de Morais com uma garrucha, que negou fogo. Mãos e braços surgiram prestes para subjugá-lo. Caído, o anspeçada Marcelino Bispo conseguiu levantar-se e arremeter contra o presidente com um punhal. Machado Bittencourt cresceu sobre ele e recebeu no peito os golpes destinados ao chefe de Estado. Três vezes apunhalado, morreu instantes depois.
A festa cívica transfigurou-se em consternação nacional. A morte do ministro da Guerra, pelo brio da farda, resvalou para a corporação a que servia e traumatizou a República. Na cerimônia fúnebre do dia seguinte, Prudente de Morais foi vibrantemente ovacionado. Daí por diante, foi firmando-se o respeito à sua autoridade.
Assim, ele pôde tirar do ostracismo um "reacionário monarquista", o barão do Rio Branco - para patrocinar questões de limites que o Brasil tinha a resolver, reatar elos diplomáticos rompidos e, principalmente, tornar o País confiável perante a comunidade financeira internacional.
Nesse panorama, Euclides da Cunha primou pela independência do olhar. Jamais escreveu uma página de ficção. Formado à luz positiva da razão, da sociologia nascente, da análise matemática, foi capaz de entrelaçar ciências puras e humanismo, num enfoque desprendido do oficialismo imperante e irrigado por extraordinário talento literário.
O escritor morreu com quatro tiros no peito, em 15 de agosto de 1909. Tinha 43 anos. A publicação em livro das reportagens feitas para o Estado deu-se em 1939, por iniciativa de Gilberto Freire, na coleção Documentos Brasileiros, com o título Canudos - Diário de uma Expedição.
Em carta a José Veríssimo, Euclides confessa: "Para mim, seguir para Mato Grosso, ou para o Acre, ou para o Alto Juruá, ou para as ribas extremas do Maú, é um meio admirável de ampliar a vida e de torná-la útil, talvez brilhantíssima." Com toda a certeza, não conseguiu compreendê-lo o historiador e ex-governador baiano Luís Viana Filho, quando escreveu: "Euclides tinha ambição modesta, aspirava apenas a estudar o interior do País."
"Canudos caiu, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados", noticiou o jovem jornalista.
7 de agosto de 1897. O engenheiro e repórter Euclides da Cunha chega a Queimadas, no interior baiano, para onde fora enviado pela direção do jornal O Estado de S. Paulo. Sua missão: relatar aos leitores do jornal os horrores da chamada Guerra de Canudos, um dos episódios mais dramáticos da história brasileira.
Desde julho daquele ano, uma campanha do governo central tentava sufocar o movimento deflagrado em Canudos. No vilarejo do sertão baiano, encravado às margens do rio Vaza-Barris, o messiânico Antônio Conselheiro exortava o povo a resistir à República e, com o auxílio dos povoados vizinhos, enfrentava as tropas do exército brasileiro à base de emboscadas e pregações religiosas. O resultado foi uma tragédia sem precedentes.
Durante dois meses, até a batalha final, o jovem Euclides escreveu e enviou ao jornal 25 reportagens. Na medida em que eram publicadas, tais reportagens ajudavam a consolidar um relato estarrecedor de um privilegiado espectador em pleno campo de batalha. De volta a São Paulo, com suas convicções republicanas seriamente abaladas, Euclides da Cunha foi convencido e estimulado pela direção do Estado de S. Paulo a escrever o livro que viria a se tornar um dos maiores clássicos da literatura nacional. Os Sertões, foi lançado em dezembro de 1902, em uma edição com apenas 2 mil exemplares. Foi o bastante para garantir à obra e ao seu autor um reconhecimento que ultrapassou as fronteiras do País. Um livro grosso, com 637 páginas de textos com vocabulário incomum, temas científicos e grande carga dramática, ilustrado com mapas, desenhos e fotografias, onde Euclides da Cunha narrava a batalha ocorrida em Canudos, na Bahia. A obra transformou-se rapidamente num best seller, tendo metade de sua edição vendida em apenas oito dias. O total de sua tiragem se esgotou em dois meses.
O professor Roberto Ventura, em sua biografia de Euclides da Cunha, define: "Em Euclides, tivemos um militar e um republicano desiludidos e um escritor notável." Ele acredita, porém que Os Sertões foi elevado à categoria clássico mais por suas qualidades sociológicas do que literárias. "O que fez com que Os Sertões prevalecesse sobre outros relatos a ele contemporâneos, como o do jornalista Manuel Benício, enviado a Canudos pelo Jornal do Comércio, é o fato de ele ter conseguido integrar a guerra a uma interpretação histórico-cultural extremanente complexa no Brasil", escreve. "Canudos se tornou, com a interpretação de Euclides, o símbolo de um processo de modernização que se dá através de violentos choques culturais e políticos. Sem isso, ela seria mais uma comunidade ou um movimento messiânico massacrado e dizimado por tropas do governo", analisa o biógrafo.
Aguardando ainda, contrafeito, a proxima partida para o sertão, percorro - desconhecido e só - como um grego antigo nas ruas de Bysancio as velhas ruas desta grande capital, num indagar persistente ácerca de suas bellas tradições e observando a sua feição interessante de cidade velha chegando, intacta quasi, do passado a estes dias agitados. E lamento que o objectivo capital e exclusivo desta viagem me impeça estudal-la melhor e transmitir as impressões recebidas. Porque é realmente inevitavel esta intercurrencia de sensações extranhas e diversas, invadindo de modo irresistivel o assumpto e programma preestabelecidos.
Numa hora assaltam-me, às vezes, as mais desencontradas impressões. Visitando, ha pouco, o mosteiro de S. Bento, por exemplo, onde se accumulam agóra os feridos que chegam, depois de atravessar por entre extensos renques de leitos contristadores, desci ao pavimento inferior.
Atravessei as naves extensas, cautelosamente, a passos calculados, olhos fixos no chão, procurando não pisar as lagens tumulares sobre as quaes indifferentes pisam todos os devotos e onde se leem, ainda, semi-apagadas pelo attrito persistente das botas, nomes entre os mais velhos da nossa historia. - E despeando-me de todo do objectivo que me levara até alli -, acurvado sobre as lousas que apparecem como palimpsestos de marmore mal descobertos memmorando remotissimos dias, permaneci largo tempo, absorto.
Na época do lançamento de Os Sertões, o mercado editorial no Brasil era incipiente e dominado por editores franceses e portugueses. O campo literário se concentrava na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, então capital federal. No centro comercial, duas livrarias se destacavam: a Garnier e a Laemmert, que dividiam o mercado de livros, dando prioridade à publicação de literatura.
Em um ambiente cultural fechado, os novatos tinham dificuldades em publicar seus livros. Deviam ganhar a simpatia de Machado de Assis, que já naquela época tinha grande prestígio no meio literário, ou dos poucos editores da capital federal. Outra saída era publicar suas histórias em capítulos nos jornais do Rio ou nas capitais mais importantes, como São Paulo. Fora dessas opções, ou até mesmo para atingi-las, deveriam freqüentar livrarias, cafés, salões e confeitarias, para divulgar seus trabalhos, recitando seus poemas, declamando suas crônicas ou lendo os capítulos dos livros que escreviam.
Euclides da Cunha não era do tipo que freqüentava as rodas literárias da Rua do Ouvidor, nem tinha proximidade com nenhum escritor consagrado. Militar e engenheiro, nunca havia escrito um livro, tinha apenas artigos, poemas e ensaios publicados no jornal O Estado de S. Paulo. Estimulado pelo diretor Julio Mesquita a transformar em livro a cobertura de Canudos, recorreu ao amigo Garcia Redondo, que preparou uma carta apresentando-o a Lúcio de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que, por sua vez, entrou em contato com os editores.
A Laemmert concordou em publicar Os Sertões, com a condição de que ele contribuísse com os custos da edição. Euclides comprometeu-se em desembolsar um conto e quinhentos mil réis (o que correspondia a dois meses de seu salário) para as despesas de impressão, sendo metade paga no ato da assinatura do contrato e o resto até o prazo em que deveria ficar pronta a obra, previsto no início para 30 de abril de 1902. A contribuição financeira do autor valia apenas para a primeira edição.
Temendo uma represália dos militares, pois seu livro contava fatos antes omitidos sobre o incidente em Canudos, e preocupado com uma crítica desfavorável, Euclides da Cunha decidiu fazer uma viagem a cavalo pelo interior de São Paulo alguns dias antes do lançamento. Na volta, encontrou duas cartas de seu editor. Na primeira, ele se dizia arrependido pela publicação e lamentava o possível fracasso do livro. Receoso, o escritor abriu a segunda carta. O editor tinha mudado de idéia. Contava que Os Sertões havia sido publicado e já era um sucesso.
José Veríssimo, em ensaio publicado no Correio da Manhã, no dia seguinte à chegada de Os Sertões às livrarias, considerou que:
O livro do Sr. Euclides da Cunha, ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem e estremece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os sertões do Norte brasileiro, venha da estupidez ou da maldade dos homens, como a Campanha de Canudos.
Em seu texto pequeno, mas contundente, fez apenas uma ressalva: considerou exagerado o emprego de termos técnicos.
Em março de 1903, o Jornal do Commercio trazia a crítica de Araripe Júnior que, além de mais longa e elaborada, demonstrava maior entusiasmo. Para ele, pela primeira vez aparecia um trabalho interessante partindo do tema de Canudos.
Pareceu-me chegar à conclusão de que Os Sertões são um livro admirável, que encontrará muito poucos, escritos no Brasil, que o emparelhem - único no seu gênero, se atender-se a que reúne a uma forma artística superior e original, uma elevação histórico-filosófica impressionante e um talento épico-dramático, um gênio trágico como muito dificilmente se nos deparará em outro psicologista nacional.
Sílvio Romero, outro crítico literário importante do período, destacou a repercussão que teve o surgimento de tal obra em 1902: "de Euclides da Cunha se pode dizer que se deitou obscuro e acordou célebre com a publicação de Os Sertões. Merecia-o." Romero referia-se ao fato do autor, um estreante na ocasião, ser repentinamente considerado um dos escritores mais consagrados da capital federal.
Euclides da Cunha acompanhou de perto a publicação da primeira edição do livro. Em maio de 1902, recebeu da Livraria Laemmert as primeiras páginas impressas de Os Sertões. Em outubro, na editora, Euclides encontrou 80 erros em seu livro. Corrigiu cada exemplar, um a um, manualmente com canivete e tinta nanquim.
A segunda edição foi lançada em 9 de junho de 1903, com uma tiragem de dois mil exemplares. Em 1905, surgiu a terceira edição, também com dois mil exemplares. As três edições foram vendidas em aproximadamente cinco anos, fazendo de Os Sertões um dos maiores sucessos de venda no restrito mercado livreiro do início do século XX no Brasil.
Para a terceira edição, Euclides da Cunha cedeu a "propriedade plena e inteira" de Os Sertões à Laemmert & Cia por um conto e oitocentos mil réis e garantiu que, de cada edição que se fizesse, cinqüenta volumes lhe seriam reservados. Embora este fato cause estranheza, uma vez que o livro continuava a ser um sucesso de vendas, o escritor passava por dificuldades financeiras, reveladas em carta a seu pai. A Laemmert não chegou a fazer uma quarta edição, pois um incêndio destruiu suas instalações. A quarta edição do livro saiu em 1911, pela Editora Francisco Alves.
O convite feito por Julio Mesquita ao poeta e engenheiro militar fluminense Euclides da Cunha para acompanhar o ministro da Guerra a Canudos, na qualidade de repórter, trouxe ao Brasil uma nova informação: a informação de si mesmo.
O País estava com os olhos embaçados pelos estremecimentos que abalavam o fim do século e não conseguia olhar-se com isenção e clareza. Euclides fez isso de modo dilatado e encantado. De tal forma que, hoje, sua obra ainda ilumina a compreensão da aventura humana no Brasil, desvendando, nas camadas profundas da nossa estratificação étnica, o encontro de brancos, pretos, índios, cafusos, mamelucos e mestiços de toda ordem, com uma terra variável no solo, no clima, nas latitudes e longitudes, na flora e na fauna, no deslumbramento de uma beleza matizada por contrastes e confrontos.
O fim do século encontrou o Brasil no início da República: uma pequena nação envolta em dissidências políticas, militares e sociais, engolfada pela bancarrota, atacada pela febre amarela, cobiçada pelo expansionismo colonialista europeu, enfrentando uma guerra civil no Sul, gritos separatistas e convulsões que explodiam em múltiplos pontos de seu enorme território.
Uma dessas convulsões, a insurreição de Canudos, ocorreu logo depois de apagadas as brasas da Revolução Federalista, conjugada à Revolta da Armada - quando, entre outros episódios, um caudilho desvairado, Gumercindo Saraiva, saiu da fronteira uruguaia, atravessou Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, chegando até Jaguariaíva, para atacar São Paulo "sem deixar prisioneiros", degolando os que fazia pelo caminho e os abandonando, sem sepultura, com o signo gaúcho da "corbata colorada": boca fechada e língua pendurada no peito, saindo pelo corte da garganta.
A primeira tropa enviada a Canudos, com 500 soldados, sofreu inesperado revés e retirou-se inteiramente desarticulada. Outra coluna militar - infantaria, cavalaria e artilharia -, com mil homens sob o comando do coronel Moreira César, foi destroçada.
Canudos transformara-se em questão de honra. E nova tropa foi remetida para o sertão: 6 mil homens sob o comando do general Artur Oscar, florianista, que se destacara nas campanhas do Sul. Mas a sorte continuava adversa. Então, Prudente de Morais nomeou ministro da Guerra o marechal Carlos Machado Bittencourt, um paulista, que logo embarcou para a Bahia.
Euclides da Cunha foi junto. A luta se metodizou e tomou feição técnica. Os jagunços defenderam-se como loucos. Na tarde de 5 de outubro de 1897 Canudos caiu, "quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram", anotou Euclides. "Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados." Festejadas, as tropas retornavam do triste arraial baiano. Em 5 de novembro, o presidente foi assistir ao desembarque de um contingente que regressava. Saindo da multidão, um nordestino rompeu o círculo das autoridades e alvejou Prudente de Morais com uma garrucha, que negou fogo. Mãos e braços surgiram prestes para subjugá-lo. Caído, o anspeçada Marcelino Bispo conseguiu levantar-se e arremeter contra o presidente com um punhal. Machado Bittencourt cresceu sobre ele e recebeu no peito os golpes destinados ao chefe de Estado. Três vezes apunhalado, morreu instantes depois.
A festa cívica transfigurou-se em consternação nacional. A morte do ministro da Guerra, pelo brio da farda, resvalou para a corporação a que servia e traumatizou a República. Na cerimônia fúnebre do dia seguinte, Prudente de Morais foi vibrantemente ovacionado. Daí por diante, foi firmando-se o respeito à sua autoridade.
Assim, ele pôde tirar do ostracismo um "reacionário monarquista", o barão do Rio Branco - para patrocinar questões de limites que o Brasil tinha a resolver, reatar elos diplomáticos rompidos e, principalmente, tornar o País confiável perante a comunidade financeira internacional.
Nesse panorama, Euclides da Cunha primou pela independência do olhar. Jamais escreveu uma página de ficção. Formado à luz positiva da razão, da sociologia nascente, da análise matemática, foi capaz de entrelaçar ciências puras e humanismo, num enfoque desprendido do oficialismo imperante e irrigado por extraordinário talento literário.
O escritor morreu com quatro tiros no peito, em 15 de agosto de 1909. Tinha 43 anos. A publicação em livro das reportagens feitas para o Estado deu-se em 1939, por iniciativa de Gilberto Freire, na coleção Documentos Brasileiros, com o título Canudos - Diário de uma Expedição.
Em carta a José Veríssimo, Euclides confessa: "Para mim, seguir para Mato Grosso, ou para o Acre, ou para o Alto Juruá, ou para as ribas extremas do Maú, é um meio admirável de ampliar a vida e de torná-la útil, talvez brilhantíssima." Com toda a certeza, não conseguiu compreendê-lo o historiador e ex-governador baiano Luís Viana Filho, quando escreveu: "Euclides tinha ambição modesta, aspirava apenas a estudar o interior do País."
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